domingo, 9 de junho de 2013

Sobre sair da ISKCON

Sobre sair da ISKCON
por
Steven J. Gelberg M.T.S.
1991

Steven Gelberg
foto recente


Desde que a maioria dos devotos que, eventualmente, saíram da ISKCON (A.C. Bhaktivedanta Swami previra corretamente que a grande maioria dos seus discípulos acabaria por abandonar o movimento), a experiência de deixar (e suas consequências) é certamente uma das experiências fundamentais na vida da maioria dos devotos e, portanto, digna de reflexão e discussão.

É difícil imaginar uma experiência mais dolorosa, mais potencialmente desorientadora, de deixar uma comunidade espiritual ou tradição à qual se dedicou anos de sua vida. Para perder a fé num sistema abrangente de ideias, que moldara a consciência e ações de uma pessoa, deixar a comunidade a qual constitui o mundo social de alguém, e a identidade social da pessoa, renunciar a um modo de vida que é um modo inteiro de ser, é uma experiência de implicações monumentais.

Especialmente quando a comunidade/tradição que se está deixando, define-se como um repositório e bastião de toda a bondade, todo o significado, toda a verdade, toda a decência, toda a realização humana significativa, pode exigir um grande esforço psicológico para reorientar, tanto a para a própria pessoa, como para o resto do mundo. Internamente, é preciso trabalhar para redescobrir e recuperar as suas próprias fontes únicas, pessoais de significado, e de viver autenticamente a partir desta profundidade interior. Externamente, é preciso aprender a lidar com o mundo exterior, o vasto território para além dos portões do enclave espiritual, aquele lugar que por um tempo foi visto como uma morada incapaz, escura e do mal, inadequado para a habitação humana. Muitas vezes, os devotos não se contentam em viver na ISKCON, mas prolongam suas estadias simplesmente por medo deste mundo demoníaco.

Esta reorientação para si mesmo e reentrada no mundo, não é tarefa fácil, sendo mais facilmente de ser realizada quando se tem o apoio de outros que já passaram por um caminho semelhante. Embora eu tenha pouco a ver com a ISKCON, por quase 14 anos, eu ainda sinto uma certa afinidade com os devotos, tanto do passado como do presente. Como eu não poderia? Dediquei totalmente 17 anos de minha vida (dos 18 aos 35 anos de idade, minha juventude) para uma vida de consciência de Krishna, nas associações com devotos igualmente comprometidos. Praticamente todos os meus amigos e conhecidos eram devotos. Eu absorvi os ensinamentos de Prabhupada na profundidade do meu ser, e preguei-os com um entusiasmo, nascido na serena confiança na sua verdade e eficácias absolutas. Dediquei-me tanto para incentivar uma imersão mais profunda na espiritualidade Vaishnava por parte de meus companheiros devotos (através da edição de livros como ‘O Mestre Espiritual e o Discípulo’, e ‘Namamrta’: O Néctar do Santo Nome), como para cultivar o respeito e apreço pela ISKCON entre os intelectuais e estudiosos, como com meu livro de entrevistas, “Hare Krishna, Hare Krishna: Cinco ilustres estudiosos falam sobre o Movimento Hare Krishna no Ocidente” (Grove Press, 1983).

Embora a minha maneira de pensar, e o modo de ser mudaram consideravelmente, desde que deixe o movimento, eu não posso me esquecer de todos os meus irmãos e irmãs que compartilharam a experiência de Krishna. Eu, como eles, entrei no movimento impulsionado por uma necessidade de conhecer e experimentar a verdade, iluminação, paz e felicidade. Assim como eu, a maioria dos devotos sentia uma atração inexplicável para com o sobrenaturalmente belo menino de pele azul, Krishna, e a estranhamente bela música do “maha mantra” Hare Krishna, e pela promessa de alcançar a transcendência. Não posso deixar de sentir uma afinidade especial para com eles.

A maioria dos devotos experimentam dúvidas vez por outra, sobre a verdade da consciência de Krishna, ou sobre a sua relação com o crescimento espiritual e psicológico pessoal. Nos meus últimos anos no movimento, certamente eu senti isso. E sei que, apesar de afirmações ao contrário, há desincentivos poderosos para expressar abertamente dúvidas na companhia de outros devotos.

As dúvidas, no entanto, podem ser a voz do próprio ser interior, esse eu que nem sempre reflete exatamente o “sistema” exterior da consciência de Krishna; esse eu que protesta ao ser formado e moldado, tratando em convertê-lo em algo que não é. Não obstante sua lealdade externa para com a ISKCON, e à tradição da qual se origina, se o ser interior não está sendo tratado, respeitado, honrado, se não lhe é permitido crescer, se não há condições para que se expresse o eu autêntico, cedo ou tarde, vai protestar. Quando essa voz interior, pouco a pouco, começa a falar, ela pode ser acalmada com o pensamento regimental, o canto em voz mais alta, as atividades externas ou a simples negação. Porém, em algum momento no caminho, esta voz está destinada a voltar um pouco mais forte, um pouco mais insistente, e em algum momento, fica-se sem a escolha do que reconhecê-la.

Gostaria, agora, dar resposta a esta voz interior, e responder com a minha própria. Aliás, não tenho nenhuma intenção malévola em fazê-lo. Não sou antissectário ou qualquer outra espécie de cruzado ideológico. Pessoalmente, eu não tenho nada a ganhar com este exercício, exceto o prazer de proferir palavras que eu considero que precisam ser faladas aos velhos amigos, e os amigos ainda desconhecidos.

Permita-me relatar algumas das razões pelas quais eu deixei a ISKCON, depois de tantos anos de serviço comprometido. Eu organizei minhas reflexões em várias seções, as quais seguem:

Onde estão os devotos puros?
Como retorno a pensar, parece-me que o fator que inicialmente pôs em movimento a minha gradual desilusão com a ISKCON, era a minha crescente consciência de que, a julgar por seus próprios critérios para o sucesso, a ISKCON simplesmente havia falhado como um movimento espiritual. Tornou-se cada vez mais e inevitavelmente óbvio que o movimento havia falhado no cumprimento do seu próprio objetivo primordial declarado: a criação de “devotos puros” – com habilidade e sucesso, orientar praticantes sérios até esses estados sublimes da consciência espiritual, elaboradamente descritos nas Escrituras e reiterados incessantemente nos fóruns de ensino do próprio movimento.

Uma coisa é clara, é que encontramos devotos que parecem estar em paz, contentes, cheios de propósitos e convicções sinceras; com alto astral, entusiasmo e assim por diante. E é verdade que a maioria dos devotos experimentou, num momento ou noutro, sentimentos edificantes no cantar, vendo a divindade, etc., mas o que dizer dos estados espirituais mais desenvolvidos, descritos com termos tais como, “bhava”, e “prema”? E sobre o amor de Krishna, que brota das profundezas do ser, domina a mente e o coração, e transforma completamente a alguém em uma pessoa santa, cuja mera presença inspira a santidade nos outros? Está realmente a ISKCON produzindo tais pessoas, obviamente, conscientes de Krishna? Preciso perguntar?

Para dar conta dessa constrangedora falta de devotos puros na ISKCON, se é forçado a promulgar uma versão de “A Roupa Nova do Rei”: fazer o melhor que se pode para convencer-se a si mesmo e aos outros, que certos devotos de alto nível, são, de fato, os devotos puros, e proclamar que aqueles que não reconhecem os seu status, ou bem não estão tão avançados para tal discernimento ou são uns “idiotas invejosos”. Ou, alternativamente, redefinir o termo “devoto puro” em uma forma tão ampla e generosa, para assim incluir o maior número de devotos possíveis (por exemplo, todos aqueles que aspiram ser devotos puros, todos aqueles que seguem seus votos de iniciação, etc.).

Alguns poucos, altamente automotivados, os devotos altamente disciplinados, aplicam-se aos princípios de bhakti-yoga e provam os frutos de seus esforços. Mas para a esmagadora maioria dos devotos, a vida espiritual na ISKCON é pouco mais do que uma luta perpétua contra os instintos de base material. A pessoa segue, ano após ano, na esperança de que, “um dia, sim um dia, um dia longe no futuro, um dia mágico e maravilhoso, me tornarei um devoto puro”.

Depois de muitos anos no movimento, cheguei à conclusão de que qualquer outro sucesso que o movimento possa desfrutar – qualquer que seja a proliferação de cabeças raspadas ou de saris; qualquer número de templos abertos, livros distribuídos, obtenção de apoio de celebridades, na ausência da criação de pessoas altamente evoluídas conscientes de Krishna, tudo é uma encenação vazia.

Fracasso ético e desonestidade intelectual
Ao longo dos meus anos na ISKCON, fiquei alarmado com o grau em que as pessoas se uniram ao movimento, em parte, como uma reação contra a desonestidade generalizada nas relações interpessoais na sociedade mundana, que se permitiam chegar a ser manipuladoras, sorrateiramente, em duas caras, em nome de promulgar a Verdade. Por mais difícil que seja de admitir, o “fim justifica os meios”, foi durante muito tempo a ética de definição e controle do movimento. Com base na presunção de que enganação, enganando e bajulando almas esperançosas, para subsidiar economicamente, e de uma forma ou de outra, apoiar a ISKCON, represente uma “moral superior”, os devotos são ensinados a dizer e fazer quase qualquer coisa se ela pode ser justificada em nome da “pregação”. Desde o devoto novo que sai à rua para obter dinheiro e dos não devotos através do fingimento evidente, até o mais intelectual e socialmente sofisticado devoto, que habilmente emprega a ISKCON de uma maneira tal que eficazmente ganha amigos e prejudica os inimigos, a ética de “atirar areia” nos olhos dos ignorantes não devotos, a fim de salvar suas almas, é a mesma.

Embora esta atitude possa parecer justificada pelo ponto de vista de uma certa ética “espiritual” autosserviçal, na prática, incentiva um desrespeito fundamental, e uma superioridade para com aqueles a quem alega ter sentimentos de compaixão, e uma atitude manipuladora e controladora para aqueles que buscam a liberação. Embora algumas manifestações mais grosseiras na trapaça terem sido atenuadas nos últimos anos, a atitude básica, no que eu posso ver, não mudou, porque está enraizada na presunção da superioridade moral da ISKCON.

Outro tipo de desonestidade fundamental é um movimento intelectual: a orientação aprendida, em que o projeto filosófico principal próprio deixa de ser um esforço sincero e disciplinado a se abrir para a verdade, sendo substituído pelo estudo, memorização, interiorização, pregando e defendendo uma “verdade”, como definido previamente, digerido e pré-embalados. Em vez de uma mente genuinamente aberta; coração aberto para o conhecimento, a pessoa simplesmente acena a bandeira da “verdade” recebida, aconteça o que acontecer; por mais que a “verdade”, possa ou não enfrentar a realidade ou fatos, questione.

Esta defesa tenaz da “verdade” recebida, em face de potencialmente refutar realidades, representa, eu sugiro, não é um ato de coragem, mas de covardia: em última análise, uma tentativa fútil de defender a frágil segurança existencial que aparece como certeza iluminada. Eu estou muito impressionado, e em retrospecto, um pouco envergonhado, por conta própria e por outros intelectuais da ISKCON, e sacrificar a honestidade intelectual e assim fortalecer nossa fé imperfeita – de acenar nossas pequenas bandeiras rasgadas da “verdade”, diante da riqueza de ideias e realidades multitexturas, que nos rodeiam.

Steven J. Gelberg
quando estava no movimento
Corações duros
Lembro-me de, ao longo de meus anos na ISKCON, estando muitas vezes desapontado com o comportamento dos líderes, que pareciam pouco se importar com a personalidade dos devotos sob seu comando. Há uma certa dureza de coração que vem das pessoas subordinadas aos princípios, definindo a instituição em si mesma como preeminente, e seus membros como meramente seus “humildes servos”.

Esta retórica da submissão tem, naturalmente, uma certa aura de arrogância: a ideia de devotos lutando juntos, reunindo as suas energias e habilidades, sacrificando a independência e conforto pessoal, a fim de servir a missão gloriosa. O problema é que, na verdade, cria um ambiente social/interpessoal em que as necessidades particulares das pessoas são desvalorizadas, não lhes são dadas importância, e se adiam indefinidamente, o que, mais cedo ou mais tarde, deixam o indivíduo devoto sentindo-se usado e abusado. Através dos meus anos na ISKCON eu me tornei cada vez mais consciente, dolorosamente e, infelizmente, ciente, das maneiras em que, em nome de “ocupar os devotos em serviço a Krishna”, os líderes e administradores, em todos os níveis, lidavam com os devotos “em seu comando”, de modo paternalista, condescendente, com mão dura e autoritária – vivendo e tratando aos seus subordinados, não como indivíduos únicos que possuem uma rica vida interior e complexa, senão como unidades de energia humana que se ajustam às tarefas necessárias de cada momento. Lembro-me de alguns líderes criticarem e, inclusive, ridicularizar a ideia de que você deva prestar uma especial atenção às psiques e necessidades individuais dos devotos, uma vez que consideravam essas preocupações como sendo mero sentimentalismo, mimos desnecessários, falta de força mental; considerando-as opostas aos sagrados princípios da humildade e da entrega.

Celibato sexy
A maioria dos devotos irá reconhecer que a proibição da ISKCON contra o “sexo ilícito” (qualquer sexo diferente de conceber filhos no casamento), é a mais difícil das proibições ascéticas a ser observada na ISKCON, sendo a causa das maiores dificuldades para os devotos, e (com a possível exceção da desilusão com a ISKCON de per se), a causa mais comum da “queda” da consciência de Krishna.

Sem discutir os méritos do celibato na vida espiritual, é justo dizer que o devoto típico, com o tempo, vai violar a regra do celibato uma ou mais vezes. O desejo sexual surge na vida de casa devoto, mas cedo ou mais tarde, em diferentes graus e formas. Desde o Guru dando aulas em trono, até o novo recruta que limpa os banheiros, os devotos pensam em sexo, fantasiam com ele, ou se entregam a ele (com outros devotos dispostos, antigas amantes, contatos externos, ou quem quer que seja), se eles pensem que podem fazê-lo sem ser descobertos. Este fato bastante óbvio não é abertamente reconhecido na ISKCON, porque é uma fonte de constrangimento significativo para os devotos, que veem a indulgência em sexo como nojento, vergonhoso, e um sinal de fracasso pessoal, e, ainda, porque sempre estão se gabando com os não-devotos do seu desfrute de um “gosto superior”, o que é evidente pelo seu desinteresse com a satisfação mundana dos sentidos.

Para ser franco, há algo muito triste e até trágico, no espetáculo de aspirantes espirituais sinceros lutando incessantemente contra e negando os sentimentos sexuais, continuamente repreendendo-se por sua falta de desprendimento heroico do corpo, procurando cantos escuros para se masturbar ou, encontrando-se “ligado” a outro devoto, planejando encontros ilícitos. Todo esse engano e hipocrisia, culpa e vergonha, negação e encobrimento, fazem da ISKCON uma farsa patética de presunção ascética.

Depois de muitos anos na ISKCON, todo o fetiche do celibato começou a aparecer-me como um pouco suspeito. Por que o fracasso abismal da maioria dos devotos de serem intransigentemente celibatários? Por que a incapacidade generalizada para realizar um ato de renúncia que a ISKCON define como uma condição prévia, não só para uma prática espiritual séria, se não para a vida humana civilizada? Por que esta falha fundamental?

Alguns devotos pensam que é devido a algum déficit inato na consciência dos ocidentais (nós somos muito sensuais), outros, a culpa do desempenho cronicamente falho do Bhakti-yoga (canto ofensivo, etc.) dos devotos, alguns afirmam que Prabhupada nos transmitiu uma prática imperfeita de Gaudiya Vaishnavismo (omitindo certos elementos místicos necessários ao processo de iniciação); alguns dizem que é uma consequência natural dos ashramas mistos (e periodicamente sugerindo que os templos se livrassem das mulheres). Seja qual for a causa, o fato é que a maioria dos devotos estão muito aquém do celibato sereno, encontrando-se profundamente enraizado em corpos físicos, que, por sua natureza, deseja tocar e ser tocado, para sentir o calor de outro ser humano.

Tão forte é o desejo natural humano para o toque físico, que, a fim de evita-lo, para reprimir o desejo por ele, é preciso pintar o quadro mais exageradamente negativo possível: imaginar o ato sexual como puramente selvagem, repugnante e animal. Porém consideremos: fazer amor é na realidade apenas transar e grunhir bestialmente? Será que não possui nenhuma ligação com os sentimentos de amor, carinho, apreço, e afeto? Certamente, como qualquer atividade humana, o sexo pode ser feio ou bonito. Ele pode ser um ato de egoísmo, abandono grosseiro, sórdido, ou pode ser uma expressão de afeto, um ato gentil de prazer mútuo, e mesmo um catalizador para os sentimentos para os sentimos de união emocional e espiritual. É somente através de uma negação deliberada da experiência passada, ou da instituição, que podemos obliterar essas lembranças, ou obstar tal capacidade de imaginação.

Meu objetivo aqui não é fazer propaganda das glórias do sexo, senão assinalar os problemas associados a sua proibição – e, também, fazer a sugestão radical de que, talvez, seja possível ser uma pessoa espiritualizada, uma pessoa de bondade, compaixão, sabedoria, sensibilidade e consciência – sob qualquer bandeira espiritual – sem negar e reprimir a sexualidade explícita.

Desrespeito às mulheres
Se a ISKCON fora realmente um movimento espiritual glorioso como dizem ser, com o único defeito tendo suas atitudes ofensivas e políticas discriminatórias em relação às mulheres, minha ex-esposa, Sitarani e eu, ainda teríamos o sentido de que estava completamente justificado abandonar esta organização para a qual havíamos dedicado nossas vidas. Tornou-se cada vez mais difícil para nós tolerarmos (e defender entre os estudiosos e estudantes, aos que, como um serviço, deveríamos “cultivar”) a mentalidade crua, irreflexiva, juvenil, de clube de crianças do movimento – o injurioso ponto de vista oficial, que considerava as mulheres infantis, irracionais, irresponsáveis, emocionais e selvagens, a não ser que “fossem controladas por um homem”.

Não é de todo surpreendente que a ISKCON seja uma instituição temerosa, que odeia e teme as mulheres. Uma religião centrada no homem, que define o sexo como inimigo da espiritualidade, naturalmente, vai definir o objeto de desejo sexual dos homens como o Inimigo Personificado: a mulher, como sendo a principal protagonista do drama sagrado do homem transcendente. As mulheres, assim estigmatizadas, são, na melhor das hipóteses, o melhor dos casos a serem tolerados – se lhes permite existir à margem de um status oficialmente menor; as suas energias são misericordiosamente canalizadas para o serviço aos homens – e na pior das hipóteses, são oficial e sistematicamente denegridas, rechaçadas e, não raro, abusadas emocional e sexualmente.

Um movimento que permite que um novo recruta masculino se sinta superior - pelo simples fato de que ele tenha um pênis – a uma devota experiente, que há estado a aperfeiçoar a sua consciência ao longo de décadas; um movimento que fomenta que um marido se sinta a vontade para mandar sua esposa como se ele fosse um marajá, e ela um carregador, tal como se ela estivera colocada na Terra simplesmente para servi-lo e satisfazê-lo – como se Krishna estivesse satisfeito com tais exibições de relações hierárquicas adequadas entre os sexos – resulta num convite para ser ridicularizado pelas pessoas de fora, e dolorosamente incitando a consciência em seus próprios membros. É de admirar que qualquer mulher que se preze tolere tais atitudes e tratamentos, e é para seu favor (suponho) que ela tolere esses abusos, de modo a permanecer conectada a uma tradição espiritual que sente ou, espera, que seja mais grandiosa ou sábia que isso.

Por um tempo, Sitarani e eu, nos sentíamos contentes em sermos “liberais” sobre o assunto – usando nossa influência, por exemplo, para que ocasionalmente uma mulher desse aula, conduzisse um kirtana, ou tivesse um voto no conselho do templo. Porém, nos cansamos de lutar para dar a volta no assunto, quando estudantes universitários exigentes e outros nos questionavam – por ter que empregar nossa inteligência e habilidade comum na busca para cobrir uma organização descaradamente machista.

Quando, finalmente, deixamos o movimento, nos sentimos muito aliviados por termos saído de um ambiente social e político que assim denegria determinadamente às mulheres, e os princípios femininos positivos. A ISKCON é, afinal, uma instituição positivamente tão masculina: toda essa obsessão pelo poder, controle, ordem hierarquia, protocolo e competição, para não falar de toda a retórica marcial batendo no peito da “conquista dos sentidos, a destruição da ilusão, o vencer o inimigo e eliminar os demônios”.

O que dizer das belas qualidades “femininas” de Sri Caitanya e seus seguidores? O que passou com sua bondade, humildade, empatia, amor, compaixão, proteção e nutrição espiritual, a delicadeza das emoções e das relações interpessoais? Enquanto os devotos ocasionalmente falam destas qualidades Vaishnavas de boca para fora, na prática, são as qualidades masculinas da dura mentalidade, agressividade, poder de dominar e manipular aos outros, é o costume que a ISKCON promove e recompensa.

Despersonalização espiritual
Um fator final na minha decisão acumulativa de deixar a ISKCON foi filosófica: uma crescente consciência de que, por mais que a sabedoria e a beleza possa ser encontrada numa tradição religiosa, nenhum sistema, pode falar integralmente por um só indivíduo. Quaisquer que sejam as possíveis origens transcendentes de um caminho espiritual, esse é transmitido através de pessoas humanas: sábias, perspicazes, pessoas santas, talvez, mas pessoas individuais distintas, tendo suas próprias histórias distintas de vida, experiências, temperamentos, modos de pensar, sentir e comunicar-se. Embora houvesse muito na consciência de Krishna que eu achei profundamente significativo e atraente, eu comecei a perceber que (sutilmente, lentamente, durante um longo período de tempo), por mais que simplesmente apagasse meus próprios sentimentos e pensamentos, não poderia cega e automaticamente aceitar cada palavra das escrituras (por exemplo, as mulheres são inferiores aos homens; trovoes e relâmpagos vêm do Senhor Indra; o sol está mais perto da Terra do que a lua, etc.).

No entanto, mais importante do que dificuldades com passagens específicas das Escrituras foi o meu sentimento crescente, de que havia algo anormal, algo artificial e forçado, sobre a própria ideia de eu ter que substituir completamente os meus próprios pensamentos, reflexões, percepções e intuições sobre mim, do mundo e minha própria experiência, com um sistema de ideias e doutrinas pré-embaladas e pré-aprovadas que, qualquer que seja a sua origem, evoluiu através de incontáveis mãos e foi refratada através de muitas mentes e sensibilidades através dos séculos. Comecei a sentir (embora tenha levado muito tempo para admitir para mim mesmo), que esta é uma demanda irreal e injusta, para ser feita em qualquer um de nós, por mais imperfeitos que sejamos, porque desonra a integridade e a particularidade de quem, em nossa individualidade essencial, somos.

Finalmente, cheguei a sentir que há algo impessoal sobre a noção de que somos algo totalmente diferentes do que estamos atualmente sentindo, que nossa personalidade manifestada é simplesmente o produto de um estado não natural, ilusório, e que para “transcender” esta sensação imediata do ser, devemos nos submeter a autoridade de certas pessoas autorizadas para uma radical reeducação – cortando, mais ou menos, todas as ideias, influências ou pessoas que, eventualmente, nos lembram os seres que erroneamente críamos ser.

Agora, sejam quais forem as belezas do caminho espiritual, há alguma coisa um pouco sinistra num sistema espiritual que, tão completa e incondicionalmente, desvaloriza o meu saber e sentir próprio e direto, e que me faz duvidar, e questionar a cada uma de minhas percepções, e o meu sentido de realidade; um sistema ao qual teria que submeter-me, em corpo e mente, a certas “autoridades”, de quem eu não vira nenhuma evidência conclusiva de perfeição – cuja situação espiritual no melhor, é tênue (à luz dos escândalos periódicos, envolvendo àqueles anunciados pela ISKCON, como “puro” e “perfeitos”).

Deve a vida espiritual realmente depender de tal ato externo de abnegação, no qual há uma rejeição tão intransigente da experiência pessoal? Estão a verdade e a sabedoria tão radicalmente separadas da minha própria consciência, do fundo do meu próprio ser? É realmente o meu interesse cegar e ensurdecer a minha visão e voz interior? É realmente humildade esta autoabnegação - o reconhecimento racional de minhas limitações pessoais – ou é, finalmente, somente uma forma de auto-humilhação e autonegação?

Comecei a perceber que a verdadeira espiritualidade não pode ser reduzida a uma estrutura corporativa, conformista e autoritária. Ao contrário, honra e confia muito no espírito individual, o suficiente para permitir que a pessoa busque o seu próprio caminho, incorra em seus próprios erros, encontre sua própria maneira, ouvindo suas intuições e reconhecendo as diversas fontes de sabedoria que se apresentam através ao longo da jornada pela vida. Finalmente, me dei conta de que, para falar de liberdade, libertação, fugindo do modo de ser da ISKCON, a mentalidade prevalecente na ISKCON é, de fato, caracterizada por um medo de liberdade diferente: uma angústia sobre a busca pessoal; um medo de confiar no momento, de abrir-se ao inesperado, de permitir que a mente e o coração sejam curiosos e receptivos, vulneráveis e aventureiros.

Existe vida depois da ISKCON?
Que tal pergunta possa ocorrer por um devoto é, em si mesma, um indicativo da mentalidade da ISKCON. Em 17 anos de consciência de Krishna, me sentei a escutar milhares de aulas do Bhagavad-gita, e do Srimad-Bhagavam (muitas delas dadas por mim mesmo). Em que eu ficava agraciado com as imagens de pesadelo do mundo fora dos muros da ISKCON – alertado repetidamente das misérias por vir, se tolamente vagasse fora das nossas fortificações. Em um lugar onde a experiência espiritual mais elevada é escassa, é necessário, de fato, criar desincentivos poderosos para sair-se, mesmo que estes se baseiam no exagero ou medo.

Porém, como se vê, o mundo não é uma câmara de horrores sem alívio, tal como se descreve nas aulas do Bhagavatam. É um “saco de gatos”, tal como é a ISKCON. Sim, há todos os tipos de coisas terríveis neste mundo: a guerra, a pobreza, a doença, o abuso sexual, o racismo e muito mais. Não se pode deixar de afirmar que o mundo é um lugar permeado por sofrimento e crueldade. Mas no meio de toda aquela escuridão e loucura, também há bondade. Para começar, há muitas pessoas de bom coração que vêm para o auxílio daqueles que estão em desvantagem, perseguidos, incompreendidos, maltratados; pessoas que tentam aliviar o sofrimento dos outros de inúmeras formas.

Aqui, o resto do mundo, também, há muitos que buscam a verdade, significado e beleza, através da autoexpressão artística. Na melhor das hipóteses, todas as artes, pintura, música, dança, literatura e assim por diante, apoiam a busca da verdade, da beleza e do sublime. Basta abrir-se às obras dos mestres criadores, caminhar por um museu de belas artes, ouvir uma grande sinfonia, assistir a um balé, perder-se numa grande novela, romance ou poema para experimentar as profundezas e alturas do espírito humano. Existem infinitas riquezas para serem vistas, ouvidas, vividas, e absorvidas nestas obras. Basta abrir-se, deixar-se sentir e experimentar.

Falando pessoalmente, ao longo dos últimos anos eu mergulhei em fotografia artística, tanto com um artista que trabalha como um estudante da história e da estética do meio, a assim obtendo profundas satisfações. Através da fotografia criativa, eu descobri em mim novas capacidades para ver, intuir, sentir, criar, comunicar. Atualmente, estou trabalhando em um livro que explora as dimensões espirituais do meio.

Além da expressão artística, que é o meu próprio caminho, existem outros locais para se viver uma vida significativa: por atividades intelectuais, através de obras de compaixão (tanto dentro e fora de instituições formais, e contextos de carreira), através do ensino, e por meio de milhares de outras formas honestas e significativas. E há, é claro, um mundo de caminhos e práticas espirituais para explorar. Ao deixar a ISKCON, encontramos uma grata surpresa ao descobrir que há muitas pessoas que se dedicam ao caminho espiritual – que buscam, através de diversos meios, serem mais conscientes, mais sensíveis, mais compassivas, e que trabalham para integrar as verdades espirituais em suas vidas. E há, é claro, muitos ex-ISKCONites, que continuam no caminho Vaishnava, porém de maneira tal que sentem que podem conservar a sua integridade e humanismo, em grande parte ausente na ISKCON em si.

Uma vez que se pisa fora dos portões da ISKCON, se descobre que a própria qualidade da consciência e do coração são os fatores que determinam o tipo de pessoa que você vai ser, e que tipo de vida vai viver. Quando você sair do templo você, de repente e automaticamente, não irá cair em libertinagem desenfreada, tornar-se um demônio ou enlouquecer. Nem será necessário assumir uma atitude de aceitação acrítica do mundo. É bem possível permanecer consciente das limitações e imperfeiçoes do mundo, e manter uma relação ambivalente e criativamente com ele, durante a construção de um espaço seguro, sensato, e significativo para se mesmo dentro dele. É um projeto, para ter certeza, mas bastante capaz de ser feito.

Por aqui, no resto do mundo, a pessoa irá encontrar, se simplesmente olhar, pessoas que são boas e decentes; que compartilham valores próprios, e cuja amizade vai nutrir e aprofundar. As pessoas que deixaram a ISKCON, também, muitas vezes encontram profunda satisfação em desenvolver relações profundas, íntimas, amorosas, que se perderam enquanto eram celibatários “brahmacaris”, e “brahmacarinis”, enquanto viviam como pessoas casadas, presas em insatisfações, hierarquias e assexuadas (ou em relacionamentos de abuso sexual).


Epílogo
Embora eu tenha cancelado a minha subscrição com a visão da ISKCON da realidade, estou profundamente interessado na Verdade/realidade, e me sinto confiante em ter pontos comuns com as pessoas da ISKCON, e cujo amor à verdade, permanece sobre qualquer lealdade automática às doutrinas e às linhas de autoridade. Seja qual for o estado lastimável da ISKCON, seja qual for à obscuridade com a qual reflete a sua glória em potencial, há muitas pessoas boas e decentes no movimento, que procuram respostas para as questões mais profundas da vida, e que são sérias sobre a descoberta e cumprimento de seu propósito mais elevado na vida. A todas elas, eu ofereço meus respeitos e minha amizade.

Se algo do que eu escrevi tem algum significado para você; se tem algum sentido ou te toca de algum modo, então, espero que se sinta livre para escrever para mim. Eu adoraria escutar você, seus pensamentos, e eu prometo que vou fazer o meu melhor para responder-lhe. Você pode chegar a mim pelo seguinte endereço: Steve Gelber, gelberg@earthlink.net. Estou ansioso para ouvir você.

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